“Então, é, num sei se cês já percebeu, nós Tupinikim, nós num pó falar, entendeu, nós num somos pessoas de chegar e ir falando falando, entendeu, sabe como é? Nós estuda assim as pessoas pra começar a falar, acho que se cê for conversar com meu tio ali, cê vai ver como que ele é, entendeu, ele fica mais ouvindo né, depois ele começa a falar.
E nós Tupinikim, nós somos povos guerreiros, sabe como é, nós, nós brigamos pelo que é nosso, né, uma causa justa, nossa, entendeu? E nós.. num.. somos índios guerreiro e nós num se entregamo fácil pra ninguém não, entendeu, pra ninguém. Nós temos objetivo e quando não conseguimos nossos objetivos nosso, nós num paramos não, entendeu, nós sempre trabalhamos em cima de uma causa justa, de uma causa nossa.
E eu como Tupinikim, eu… eu… eu sempre eu vou brigar melo meu povo, entendeu, sempre vou brigar pelo meu povo, sempre eu vou eu vou tirar a camisa entendeu, vou sair de cocar mesmo, vou me pintar entendeu, vou mostrar o que eu sou, entendeu? E eu num tenho vergonha de falar que sou índio não, qualquer lugar que eu chegar, num preciso nem falar alto não que eles já me identifica, você é índio num é? E eu: sou, por quê? Ah, nada não e tal, entendeu? Porque tem umas pessoas que não gostam de índio, né, tendeu? E as pessoas que não gosta, ai mesmo que eu falo mesmo, sou índio mesmo, acabou, entendeu. O negócio é eu, com muito orgulho e com muito amor, eu sempre falo isso com meus filhos, com minha filha mais velha, eu falo com ela, você num tem que ter vergonha não Mariana, de falar que ce é índia não, porque você chegando os pessoal te identifica já que vc é índia, você vai negar uma coisa que você é? Não pai, mas eu num faço isso não. Então, eu sei, mas eu to falando pra você. Porque tem índio, vou falar, vou ser sincero, tem índio que nega que e índio entendeu, tem índio que fala que não é índio, entendeu. mas o povo Tupinikim é assim, é um povo guerreiro, um povo brigador. O que eu tenho pra falar é isso. E pelo meu povo, eu brigo mesmo.” [sic]
Marcelo Francisco, 42
Aldeia Pau-Brasil
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OS ÍNDIOS TUPINIKIM NO ESPÍRITO SANTO HOJE
QUEM SÃO? QUANTOS SÃO? ONDE ESTÃO?
Klítia Loureiro[1]
Nomes alternativos: Margayá, Tuayá
Classificação lingüística: Tupi-Guarani
População: 2.579
Local: Município de Aracruz – Litoral norte do Estado do Espírito Santo
Atividade predominante: agricultura de subsistência – mandioca, milho, entre outros itens.
A etno-história dos índios no Espírito Santo é bastante rica, mas pouco precisa e conhecida. No entanto, é possível observar que no século XVI as informações são abundantes. Nos séculos XVII e XVIII tornam-se escassas, possivelmente pela posição política de pouco destaque da Província do Espírito Santo e também pelo isolamento da população portuguesa e neo-brasileira no litoral. Já no século XIX as informações voltam a ser abundantes.
Os Tupinikim são, entre inúmeros povos indígenas, dos mais citados e paradoxalmente mais desconhecidos no Brasil. Tupinikim é sinônimo de nacional na língua corrente (antropologia Tupinikim, cinema Tupinikim etc.), mas o emprego do termo pouco ajuda a desvendar a realidade de um povo específico que luta pela sua sobrevivência. Afinal, quem são os Tupinikim hoje?
Os Tupinikim (Tupiniquin, Margayá, Tuayá) constituíam-se num subgrupo Tupinambá, classificado no tronco lingüístico tupi. Habitavam estreita faixa de terra entre Camamu (Bahia) e o rio Cricaré ou São Mateus (Espírito Santo). Tinham como vizinhos meridionais os Waitaká ou Goitacaz, os Tamoios e os Temiminó. Existem ainda referências a outro subgrupo denominado Tupinakin Tabayara, que vivia entre Angra dos Reis e Cananéia.
A autodenominação Tupinikim, grafada ao longo dos anos de diferentes maneiras – Topinaquis, Tupinaquis, Tupinanquins, Tupiniquins – significa, conforme o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de Antenor Nascentes, com apoio do historiador Varnhagen, “Tupi do lado, vizinho lateral”.
No passado, os Tupinikim falavam a língua tupi litorânea, da família tupi-guarani. Hoje, falam apenas o português. O registro que temos a respeito dessa sociedade encontra-se nas anotações de viajantes e cronistas que passaram por essa região desde os primórdios da colonização.
Estimativas propostas por John Heming indicam uma população Tupinikim, distribuída entre o Espírito Santo e o sul da Bahia, de 55 mil habitantes, isso no início da colonização brasileira. Entretanto, essa população foi-se reduzindo de forma drástica, devido aos conflitos com o colonizador, das doenças advindas desse contato e da política de aldeamentos.
Em linhas gerais, é possível afirmar que, até a primeira metade do século XX, os Tupinikim viveram nas áreas menos povoadas do território indígena, demarcado pela Coroa em 1760. Habitavam a região que circunda o atual município de Aracruz onde, na época, as matas e florestas permitiam-lhes viver da pesca, da caça, da coleta de frutos e da agricultura de excedentes.
Até o início dos anos 1960, a região em que viviam os índios era de mata virgem, e a comunicação entre as localidades fazia-se por trilhas no meio da floresta. Entretanto, em sua maior parte, as famílias indígenas eram encontradas dispersas pela mata, plantando nos trechos de capoeira, com a eventual agregação de parentes e afins.
As aldeias tinham a disposição de ruas. As casas eram de pau-a-pique e sapê, cercadas por mato ou capoeira, utilizados na medida da necessidade. Com frequência, os Tupinikim mudavam de casa e roçado, seja pela realização de um casamento seja em busca de melhores condições de sobrevivência. As casas e os roçados podiam ser feitos em qualquer lugar. Todavia, existiam regras de acesso à terra, não sendo permitido cercá-la ou detê-la exclusivamente. Havia uma posse comunal da terra, pois os cultivos em extensões podiam ser utilizados por todos os grupos familiares. Existiam ainda os domínios de caráter comunal – matas, rios, fontes, entre outros. Esse sistema de posse comunal de terras e outros domínios, aliado à apropriação doméstica e individual do produto do trabalho, permitia a sobrevivência dos Tupinikim. (Grupo Técnico, Portaria no 0783/94).
Na economia doméstica das localidades próximas ao rio Piraquê-Açu, a pesca e a coleta nos manguezais tinham um papel relevante. Pescavam de linha ou usavam inúmeras armadilhas produzidas artesanalmente, como o quitambu (cercado de espinho) e o jequiá (cesto de varas flexíveis, afunilado). Pegavam também caranguejos, mariscos e muitas ostras. Da casca da ostra mantinham um secular processo de fabricação de cal, comercializada em Santa Cruz junto com mariscos, farinha, lenha e artesanato constituído por colheres de pau, gamelas, esteiras, remos e peneiras, além de cestos, samburás e balaios, produzidos com o cipó imbé.
Independente do comércio em Santa Cruz tinham um sistema de produção econômica em que um caçava, outro pescava, e outro ainda fazia farinha, trocando os produtos entre si, numa divisão de trabalho informal. Era o sistema de índio, noção que os Tupinikim utilizam para divulgar e normatizar as práticas indígenas.
De um modo geral, toda a região da Comarca de Santa Cruz, próxima das aldeias tupinikim, manteve-se pouco povoada e com uma economia precária até os primeiros anos do século passado. Santa Cruz, que havia sido um importante porto de escoamento da produção de Colatina, entrou em declínio com a construção da Estrada de Ferro Colatina – Vitória, que deslocou o eixo econômico do litoral para o interior do Estado. Durante as quatro primeiras décadas do século XX, a população Tupinikim não se viu afetada de forma direta nas áreas onde habitava, uma vez que a chegada de estranhos, que derrubavam as matas e florestas naturais para a formação de pastos e a criação de gado, ocorria de forma lenta, em um ritmo pouco intenso.
Nesse período, os Tupinikim encontravam-se dispersos em várias comunidades (aldeias), hoje extintas, mas lembradas pelos mais idosos, os quais recordam os locais e o modo de vida daqueles índios. Por meio de relatos orais foram identificadas as localidades de Caieiras Velhas, Irajá, Pau-Brasil, Comboios, Amarelo, Olho D´Água, Guaxindiba, Porto da Lancha, Cantagalo, Araribá, Braço Morto, Areal, Sauê, Gimuhuma, Macaco, Piranema, Potiri, Sahy Pequeno, Batinga, Santa Joana, Morcego, Garoupas, Rio da Minhoca, Morobá, Rio da Prata, Ambu, Lagoa Suruaca, Cavalinho, Sauaçu, Concheira, Rio Quartel, São Bento, Laginha, Baiacu, Peixe Verde, Jurumim e Destacamento. (Grupo Técnico, Portaria nº 0783/94).
Mudanças mais intensas na região habitada pelos Tupinikim só se processaram de forma efetiva a partir dos anos de 1940, com a chegada da Cofavi, que passou a explorar, com autorização do Estado, 10.000 há de terras indígenas para a produção de carvão vegetal. A Cofavi constituiu-se na primeira grande empresa a se instalar no local, responsável pelo início do ciclo de destruição da Mata Atlântica e pela entrada de posseiros no território indígena[2]. Conforme relatório do estudo socioeconômico realizado na comunidade indígena de Caieiras Velhas e adjacências (1976), tal atividade predatória “[…] não chegou a ferir a integridade total das matas onde o grupo Tupinikim ainda caçava.”
Já no final dos anos de 1960, a Aracruz Florestal iniciou seus empreendimentos na região, adquirindo da Cofavi os 10.000 ha de terras indígenas que lhe foram entregues pelo Governo Estadual. Em seguida, a Aracruz comprou, “[…] pela quantia simbólica de oito décimos de centésimos de cruzeiro o metro quadrado, mais trinta mil hectares de terras indígenas, que foram negociadas pelo Estado como se fossem terras devolutas”. (Guimarães, 1982, p.143)
A partir daí, intensificou-se o processo de expropriação das terras tradicionalmente ocupadas pelos Tupinikim, que passaram a viver “ilhados” dentro de seu próprio território. Extensas áreas de matas e florestas naturais foram sendo derrubadas e substituídas pela monocultura do eucalipto, que se estendia, segundo relatos, até o quintal de suas casas, deixando os moradores acuados e obrigados a abandonarem o local.
Os Tupinikim são originários das terras hoje delimitadas como estado do Espírito Santo e são os últimos de seu povo. Habitam três terras indígenas, no litoral norte do estado, todas no município de Aracruz, distante da capital, Vitória, a aproximadamente 83 quilômetros. Vivem nessas terras cerca de 2.880 índios. Desses, segundo dados da Funai, existem cerca de 2.579 Tupinikim habitando as aldeias de Caieiras Velha, de Comboios, de Irajá e de Pau Brasil.
A Terra Indígena (TI) Caieiras Velhas está localizada às margens do rio Piraquê-Açu, com uma extensão de 2.997 ha. Metade da sua área é tomada por capoeiras, enquanto a outra metade está dividida entre o que restou da Mata Atlântica, áreas de cultivo e o mangue do referido rio. Fazem parte dessa área indígena as aldeias de Caieiras Velhas e Irajá, ocupadas pelos Tupinikim, e Boa Esperança e Três Palmeiras, ocupadas pelos Guarani Mbya.
A TI Pau-Brasil com 1.579 ha tem como um de seus limites o córrego Sahy. Capoeiras e macegas ocupam 70% da sua área, que não possui matas, e 20% do seu espaço é dedicado a cultivos.
A TI Comboios, com 3.800 ha, situa-se às margens do rio de mesmo nome, tem quase toda a sua área ocupada pela capoeira (50%) e a mata de restinga (40%), pois, com o solo pobre e arenoso, o cultivo é mínimo.
[1] Mestre em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo (2006). Pesquisadora sobre a luta pela terra indígena no Espírito Santo. Autora do Livro “História dos índios do Espírito Santo” (2009).
[2] LOUREIRO, Klítia. TEAO, Kalna Mareto . História dos índios do Espírito Santo. Vitória: Editora do autor, 2009.
Para maiores informações e obtenção do livro História dos Índios do Espírito Santo: